Amir Klink

"Um homem precisa de viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens ou TV. Precisa de viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio tecto. Um homem precisa de viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser; que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver." Amir Klink















domingo, 6 de setembro de 2015

Dia 5, De Valença a Pontevedra, ~60km, O Pápa-Léguas.

   A hora não fugiu á regra e hoje por ter dormido numa silenciosa camarata estava com o merecido descanso feito. Levanto-me como todos já tinham feito, desço a cozinha ponho a conversa em dia e como normal sou eu quem fecho a porta do já vazio Albergue de nome São Teotónio lembrando o santo padroeiro nascido a 1082. 
   

   Tal como esperado entro na muralha, mesmo sendo domingo às ruas estão ainda vazias e deparo-me não só com a beleza do lugar mas também com o arquitectura maquiavélica deste forte fronteiriço, antecâmaras com janelas minúsculas juntos aos portões duplos que intimidariam qualquer invasor, e onde se nota que qualquer tentativa de invasão deixaria o inimigo muito mal tratado. 


   Desço e chego a ponte velha, construção de engenharia Eiffel, um tubo quadrado em vigas arrebitadas assente em 4 pilares de pedra, no piso inferior passam os carros e nas laterais uma passerelle para peões, por cima uma linha férrea. 


   Entro em Tuy e subo ao centro histórico, também de seu encanto mas mais vila que muralha. Visito umas quantas igrejas de rompante e sigo no caminho. 


   Vou passando alguns grupos de passada e etapas mais curtas até chegar a um bar familiar de nome "O Chiringo", plantado num jardim, a ideia como sempre seria de seguir mas ao ver que aí estavam alguns dos colegas mais comuns doí-me ao luxo de parar para  um café, carimbar a credencial e trocar dois dedos de conversa. O António, rapaz para a idade do meu pai, apareceu apenas no dia anterior mas pelo pausado falar e sabias palavras dava para ver que estava perante alguém com um pouco do conhecimento fora do geral, com ele fiquei um pouco mas como a minha etapa era longa segui. 



   Por motivos de conforto o traçado original do caminho foi alterado afim de tirar as pessoas de um longo complexo industrial, boa aposta uma vê que a paz do passeio compensava de longe o betão do antigo caminho, serpenteando um rio nos últimos km e terminando mesmo á porta do Albergue de O Porriño, onde maioria das pessoas ficavam e pelas 13:30 já tinha fila de espera.... 18 km estavam feitos e a minha meta estavam a 18 km mais ( pensava eu). 


Atravesso O Porriño e decido parar apenas onde houvesse um ponto de água, embora não tivesse reparado em nenhum até aqui, certo é que muito tive que caminhar, aqui e ali já me ia degustando com maduras uvas tintas, brancas e figos, ao sair da figueira tinha uma mesa a sombra com o primeiro ponto de água que tinha visto, estavam cerca de 30 graus e já contava com perto de 25 km nas pernas. Aí parei para comer o que carregava, a sobra da lasanha de ontem com umas chips, cenoura á dentada e chá de limão. Com o peso transferido da mochila para o estômago faço chego rapidamente a Mós. 


   O albergue em Redondela era já por mim conhecido mas apenas de passagem, tendo eu curiosidade de pernoitar nele, um edifício caricato no centro do lugar mas nesta etapa não me saía da ideia a sugestão feita pelos hospedeiros em Valença (aos quais se lerem este artigo lhes agradeço a meia hora de conversa), existe um novo caminho mais longo que se chama a "via espiritual" e a minha mente magicava uma maneira de a fazer.... exagerando nos kms hoje poderia cumprir esse caminho dentro do meu prazo, isso queria dizer juntar 18 aos 36 dando a módica quantia de 54 km e tendo eu de dar ao pé até as 21 horas.... a ideia parecia-me louca mas todavia possível e tal como sempre dizia aos outros colegas do caminho "há que sofrer para que a oferta seja válida" caso contrário é um esforço em part-time bem abaixo das nossas capacidades. 


   Chegado a Redondela o albergue estava completo, carimbo, encho a garrafa e sigo para oferecer então este sacrifício ao Santo, confesso que a ideia inicial deste caminho é de agradecer pela saúde que tenho, então há que usar-la ao máximo como sinal de oferta. 


Uso um pouco daquilo que vejo e penso tirar a pequena mochila da comida de trás e metê-la á frente, assim compenso o peso das costas e posso comer enquanto caminho, tinha então pelo menos 3 horas de passo largo, assim fiz, gostei e pondero fazê-lo mais vezes se necessário, os pés sofrem o mesmo mas folgam um pouco os abdominais e as costas por ir mais equilibrado. 


   Do lado espanhol muitas das indicações do tem por baixo a distância que falta até Santiago, tem o seu lado bom mas no geral é tortura e tento ao máximo desviar o olhar para essa informação, o mesmo acontece com as horas porque me quero perder no tempo, e para que isso acontecesse não trouxe relógio de pulso nem GPS, hoje dei por mim a pensar que horas seriam e o meu palpite foi 8:20 da tarde, puxei do telemóvel e vi que falhei por 3 minutos. 




   O sol já ia baixo e escondeu-se, as pernas num ritmo quase perpétuo permitiam avançar miraculosamente com a frescura da manhã e na ideia apenas pedia ao Santo que tivesse lugar no albergue, chego eram 21:15 quase 12 horas depois de iniciar estes certamente quase 60 kms tendo em conta o desvio de O Porriño e vejo a cara de espanto dos hospitaleiro pois já tinham fechado a conta antes as 22h previstas, quando lhe pergunto se tinham cama recebo um sorriso dizendo "quedan duas", a minha é a que sobrou. Como já era tarde e tinha comigo apenas uma lata de atum com umas bolachas e limão para um chá procuro uma massa ou arroz de sobra na cozinha e pela primeira vez não havia nada de sobra, valeu-me uma senhora que me ofereceu uma deliciosa tortilha. Escrever umas linhas e dormir que certamente dormirei bem de cansado. 



Um abraço peregrino, Samuel Santos. 

1 comentário:

  1. "Ousar é perder o equilíbrio momentaneamente...não ousar é perder-se."
    Soren Kierkegaard
    Celebro a ousadia e a coragem do coração que age e que avança no caminho!
    Um abraço peregrino!

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